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Deixe-me ser mulher: Lições à minha filha sobre o significado de feminilidade 36

36 | IGUALDADE PROPORCIONAL


Casamento não é um negócio meio a meio. Tão logo seja concebido como tal, torna-se uma guerra de poder, com picuinhas e disputas de pontos para garantir que um não supere o outro. “Se eu fizer isso, você terá que fazer aquilo”. Já li sobre contratos de casamento em que todas as tarefas domésticas eram efetivamente designadas a um ou ao outro — nas terças e quintas-feiras, por exemplo, a esposa faz o café da manhã e se certifica de que os filhos se aprontem, alimentem-se e levem à escola seus livros, dinheiro para o lanche, passagens de ônibus, roupas de ginástica e assim por diante. O marido faz tudo isso nas segundas, quartas e sextas-feiras. A esposa cozinha o jantar nas segundas, quartas e sextas-feiras; o marido, nas terças e quintas-feiras. Os fins de semana são distribuídos de acordo com a quantidade de trabalho externo a ser feito, quem fez mais “extras” durante a semana, e assim por diante. Você consegue se imaginar aos sábados sentando-se para fazer a contagem de pontos? Você imagina chamar esse tipo de arranjo de casamento? Isso pode ser outra coisa senão uma parceria de negócios? Alguns, porém, chamam de liberdade ou maturidade. Qual deve ser a porcentagem, então? Pergunta errada. Vocês poderiam perguntar isso se fossem herdeiros, em conjunto, dos imóveis de uma tia-avó, mas nós estamos falando da graça, a graça de vida. As igualdades entre vocês já foram delineadas: igualmente pecadores, igualmente responsáveis, igualmente necessitados de graça e igualmente objetos dessa graça. É aí que termina a divisão meio a meio. Vocês assumem a vida como marido e mulher, e começam a sacrificar suas vidas — não como mártires, não como capachos ou ascetas fazendo um voto especial de santidade, mas como dois amantes que precisaram da graça e a receberam, que sabem muito bem que continuarão precisando dela e a recebendo todos os dias em que viverem juntos. É um grande alívio não termos de ser iguais. O lar é o lugar no qual devemos nos permitir ser desiguais, o lugar em que cada um conhece as desigualdades do outro e sabe, ademais, que são as desigualdades que fazem o lar funcionar. Mas desigualdade é realmente a palavra errada. Talvez a ideia de justiça de Aristóteles explique o que quero dizer. Ele chamou a justiça de “igualdade proporcional”. Ou seja, justiça é “a arte de distribuir porções cuidadosamente calculadas de honra, poder, liberdade e coisas do tipo para os vários escalões de uma hierarquia social fixa, e, quando a justiça é alcançada, produz uma harmonia de diferenças”. 15 Não vou defender a validade política da definição de Aristóteles. Deve ter funcionado em seu tempo e em outras épocas desde então, mas trata-se de outro mundo, um mundo com o qual os cristãos têm de conviver e do qual têm de participar, mas que não é necessariamente administrado sob princípios cristãos. Um lar cristão, entretanto, é um mundo em si mesmo, um microcosmo que representa — assim como a igreja representa — a hierarquia do próprio cosmos. E pode ser administrado sob princípios cristãos. Aquela expressão “porções cuidadosamente calculadas” já é o bastante para causar arrepio. A quem cabe aferir e distribuir essas porções? Claramente, alguém deve fazê-lo. Deve haver uma autoridade competente para fazer isso. Na casa em que cresci, éramos seis filhos, com diferença de idade de até dezesseis anos. O melhor quarto, o único com banheiro, pertencia à esposa do meu avô, que morou conosco durante oito anos. Quando ela morreu, aquele quarto passou a ser dos meus pais. A melhor cadeira da sala, aquela com abajur e apoio para os pés, era de meu pai. Ele se sentava à mesa de jantar em uma das extremidades; a mamãe se sentava na outra. Os filhos de quatro anos tinham trabalho a fazer assim como os de vinte, mas cada um era “cuidadosamente aferido”. Os pequenos cuidavam das lixeiras, os grandes cozinhavam, cortavam a grama, passavam as roupas, pintavam a casa. As moças sabiam quais tarefas nessa lista lhes cabiam; os rapazes, igualmente, sabiam as deles. As moças faziam a maior parte do trabalho de lavar a louça, mas os quatro rapazes se revezavam para secar e guardar. Minha mãe cozinhava enormes quantidades de comida boa e simples. Normalmente, havia o suficiente para quem quisesse repetir, mas minha mãe jamais “guardava” comida para alguém. Ocasionalmente, havia reclamações de injustiça do tipo: “Por que ele não precisa fazer isso também?”. Se restasse um biscoito no prato, a ideia de justiça da minha irmã era: “Alguém deseja isso mais do que eu?”. Se houvesse o que meu pai chamava de “bate-boca” entre os filhos, eles eram convocados separadamente para testemunhar. No minuto em que o reclamante começava com “Bem, ele...”, era interrompido. “O que você fez?”, essa era a questão: “Eu só quero ouvir o que você fez”. Às vezes, isso resultava no total enfraquecimento do testemunho e na desistência das acusações. Essa justiça doméstica era baseada na autoridade doméstica. No casamento, se duas pessoas maduras se amam, toda essa questão de autoridade é quase inteiramente de compreensão tácita. Eu provavelmente poderia contar com uma mão, talvez com um dedo, os momentos em meus próprios casamentos nos quais isso se tornou uma questão consciente. Quando acontecia, claro, eu precisava me lembrar de que os limites haviam sido traçados — não por meu marido, mas por Deus. Eu fora originalmente criada para ser uma auxiliadora, não uma antagonista.

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